Circuito da Gávea: 1937 - GP Cidade do Rio de Janeiro (Cap. 11)
• Por Alfa Romeo Clube do BrasilCapítulo 11 do incrível artigo elaborado por Alberto Maurício Caló sobre o Circuito da Gávea.
CIRCUITO DA GÁVEA – 1937 - GP Cidade do Rio de Janeiro
(CAPÍTULO 11) Por Alberto Maurício Caló
Porque Stuck e a Auto Union?
Sobre a Auto Union a versão corrente é que a Auto Union não sabia da contratação da Ferrari quando tomou a decisão de vir ao Brasil ou, pelo menos não sabia que a Scuderia Ferrari viria com uma configuração mais competitiva, ou seja os monopostos em uso na Europa e dois de seus pilotos titulares (embora sem a grandeza de Nuvolari).
A Scuderia sabia da Auto Union inscrita na Gávea, mas a Auto Union não sabia da Scuderia
Se assim fosse, a Auto Union se preparava para um “passeio” no Brasil, mas essa presença da Scuderia mudava a coisa de figura.
Mais tarde vamos entrar em detalhes sobre Stuck e a Auto Union, mas vamos adiantar duas observações; O Auto Union tinha trazido para a Gávea um monoposto do tipo C era o carro em uso na Europa e a temporada de 1937 foi aquela em que o modelo fez quase toda a temporada na mesma configuração. Sobre o carro em si, basta dizer que era o mesmo utilizado nas provas européias, absolutamente atualizado
Stuck, como veremos depois, foi instrumental para a Auto Union participar da nova formula de Grand Prix e receber a verba estatal alemã. Também foi instrumental na incorporação do projeto que o Prof. Ferdinand Porsche começara a desenvolver a pedido do piloto amador Príncipe Zu Leinegen.
Assim, naturalmente, Stuck foi o “primeiro piloto” da Auto Union em 1934, relegado à condição de segundo piloto com a chegada do astro italiano Achille Varzi em 1935.
Ao longo de 1936, Varzi com vários problemas pessoais daria lugar à estrela ascendente Bernd Rosemeyer, o que novamente relegava Stuck à condição de segundo piloto.
Mas Stuck tinha um status especial na equipe que vamos narrar depois e era privilegiado não só por um bom contrato, mas também pelo fato de ser um “às” nas provas de montanha e, nessa condição, era autorizado a se apresentar nas principais subidas de montanha européias (como vimos, Alemanha, Áustria, França Inglaterra e Itália) para as quais havia uma versão do Auto Union especialmente preparada.
Foto: Tirando os “Grand Prix”, a Auto Union faria aparições especiais nas subidas de montanha mais tradicionais da Europa e anotou 15 vitórias em 19 participações ao longo do período 1934-1939. Hans Stuck, especialista na matéria, era normalmente o piloto dessas aparições exceto quando elas envolviam o chamado “campeonato alemão de subida de montanha” onde habitualmente Auto Union e Mercedes levavam dois pilotos ou mais cada uma. Uma das mais famosas aparições foi na tradicionalíssima Shelsley Walsh, o mais antigo evento automobilístico britânico e mundial realizado de forma contínua exceto anos de guerra. Em 1936 a Auto Union levou um carro especialmente preparado com rodas duplas na traseira e Hans Stuck que já havia vencido a prova em 1930 com um Austro Daimler foi escalado para pilotar. Apesar da impressão causada, Stuck teve que subir no molhado e perdeu para Raymond Mays (ERA) que subiu com o pavimento seco. As condições eram tão desfavoráveis que o tempo de Stuck foi pior do que conseguira seis anos antes em sua vitória com o Austro Daimler.
Em 1937 a Auto Union, que usava mais frequentemente seus carros como instrumento de propaganda do que a Mercedes, autorizou Rosemeyer e Von Delius a se deslocar para a África do Sul para as duas exóticas provas de handicap em janeiro de 37, o South African GP em East London e Grosvenor GP na Cidade do Cabo.
O então chefe da Auto Union, Barão Klaus Von Oertzen, já tinha sido representante da empresa no país e foi convencido pelo organizador do evento, Brud Bishop, que a participação promoveria a DKW (marca do grupo) no mercado local sul-africano.
Para encanto do público alemão, Bernd Rosemeyer estava noivo Elly Beinhorn, uma famosa aviadora alemã e ambos viajaram no monoplano Messerschmitt se tornando assim o “casal midiático” da propaganda alemã.
As provas na África do Sul eram em um sistema de handicap que naturalmente era uma “armadilha” que prejudicava pesadamente os carros de maior cilindrada como os Auto Unions o que por si só desaconselha a aventura. Como sempre um contingente de pilotos locais com seus “especiais” e vários esportivos como MGs, Rileys e velhos Bugattis. Mas ali estavam algumas presenças de relevo como Hans Ruesch e sua Alfa 8C 35, Lord Howe com seu Bugatti tipo 59 Grand Prix, Pat Fairfield em um ERA, Piero Taruffi em uma Maserati 8CM e o astro ascendente inglês Richard “Dick” Seaman em seu lendário Delage S8.
No South African GP, Rosemeyer ficou em quinto no handicap após vários problemas de pneus embora fosse incontestavelmente o carro mais rápido. Venceu Patrick “Pat” Fairfield em um monoposto ERA. No Grosvernor GP, a Auto Union aprendeu a lição e protestou contra seu handicap, mas acabou participando da prova, agora mais “escolada”. Von Delius e Rosemeyer adotaram estratégias opostas de paradas de pneus para dividir as forças e Von Delius ganhou com Rosemeyer em segundo, mas por pouco ambos não foram derrotados pelo Lord Howe que nessa prova participou com um monoposto ERA.
Era um evento exótico em sistema de “handicap”, com carros largando separadamente cuja participação se deve mais a Von Oertzen e à propaganda alemã em torno de Rosemeyer e certamente a um bom acordo financeiro da equipe com os organizadores, mas certamente não foi levado em consideração como um GP clássico, como seria a prova da Gávea.
A presença na Gávea, além do que vamos narrar adiante, se deve principalmente à propaganda alemã e a um bom incentivo interno de Stuck, cansado de ser o “segundo piloto” na Europa e já sabendo que no Brasil teria um tratamento de “astro de hollywood” até porque já possuía experiência local.
OUTROS FATORES NA PRESENÇA DA AUTO UNION E DA SCUDERIA FERRARI
Quatro pontos devem ser analisados sobre a presença de Auto Union e Scuderia Ferrari na Gávea e 1937
a) Neste caso houve, sem dúvida nenhuma, influência política. A Alfa Romeo era uma estatal, embora a Scuderia Ferrari operasse mais com uma ótica privada, como veremos a seguir. A divisão de corridas da Auto Union fora criada com incentivo financeiro estatal e ao lado da Mercedes sua participação nas corridas era vista como parte da propaganda estatal alemã. As duas nações tinham grandes laços com o Brasil, desnecessário dizer. A Alemanha estava tomando o lugar de maior parceiro comercial do Brasil, disputando essa primazia com os Estados Unidos e a “mostra” da capacidade industrial alemã através de seus quase invencíveis carros de corrida era uma política óbvia. Além disso uma política de boa vizinhança a um Brasil governado por um Getúlio Vargas ainda indeciso sobre que lado tomar em um conflito mundial que se avizinhava era também um dado óbvio. A importância geopolítica brasileira era irrefutável e ter bases “simpáticas” na América do Sul era um imperativo para os países do hemisfério norte. Por fim, até uma noção de que outros países sul americanos eram muito mais simpáticos à Alemanha, mas o Brasil era um ainda país indeciso nas suas simpatias políticas, devem ter levado ao empurrão final para participar da prova brasileira. Segundo todas as fontes o acerto do custo da participação da Auto Union foi uma negociação bem mais rápida do que o acerto da reapresentação da Scuderia Ferrari. O interesse industrial/comercial italiano era um pouco mais remoto. A Auto Union era uma “marca nova” embora algumas de suas marcas componentes já tivessem bom nome e vendas no Brasil como a Horch (carros de luxo concorrentes da Mercedes Benz e outras marcas de luxo) e a Wanderer (conhecida por seus veiculos de gama média para luxo). Das outras marcas da Auto Union seria ainda necessário esperar muitos anos para atribuir relevância à DKW (que viria no pós guerra nos anos 50 pelas mãos da VEMAG) e muitos mais pela AUDI que viria nos anos 90 já como subsidiária da VW.
MAS, de forma inusitada, houve um movimento prévio da Auto Union no Brasil em 1936.
Uma ação de marketing, oferecendo um dos vários prêmios “avulsos” na prova da Gávea de 1936 e uma inscrição de um Wanderer “adaptado”. Essa participação do Wanderer foi, porém, um “anti-climax” diante da expectativa da Auto Union mandar um legítimo carro de corridas de sua equipe oficial.
O jornal “O Correio” de SP, antes da prova da Gávea de 1936 noticiara que Peter Schagen mandara vir um Wanderer para correr na Gávea mas preferira entregar o volante a Hans Stoffen para representar a Alemanha na prova. Hans Stoffen que além de piloto amador era o representante da Wanderer no Brasil já tinha sido visto na Gávea de 1935 com.Bugatti T37 A. Curiosamente em 1936 a Auto Union do Brasil (semi-oficialmente representada pelo Wanderer de Hans Stoffen) tinha oferecido uma pequena motocicleta como prêmio especial ao piloto que aparecesse liderando a 15ª volta da prova.
Correio da Manhã- junho de 1936 e o “prêmio especial” da Auto Union.
Como curiosidade adicional, tanto Stoffen como Julio de Moraes estavam inscritos na Gavea de 1936 com um “Wanderer Especial”, mas o jornal “O Imparcial” da véspera da prova informava que Julio de Moraes não participaria. Tudo nos leva a crer que Stoffen venderia em seguida o mesmo “Wanderer Especial 2,6” para Julio de Moraes que com ele apareceria em 1937 e nas Gáveas seguintes.
O Jornal “O imparcial” de junho de 1936 explicando com certa decepção a primeira aparição da Auto Union com um inusitado “Wanderer especial” ao invés de um legítimo Auto Union de corridas.
Da obscura participação de 1936 fica uma dúvida. Teria o Wanderer chegado em 1936, na configuração de elegante carro esporte (foto a seguir), e após o acidente noticiado abaixo ter sido “reconfigurado” como monoposto no ano seguinte, ou são dois carros distintos? (o esportivo abaixo e o monoposto que a partir de 1937 fez algumas aparições com Julio de Moraes).
O Wanderer adaptado de Júlio de Moraes na Gávea de 1939. O carro é basicamente o mesmo de 1937, como veremos a seguir.
Dito isto, sobre esse “arremedo de participação” da empresa Auto Union em 1936 com um Wanderer adaptado, vamos apenas antecipar que Stuck, embora sem participar das Gáveas anteriores já tinha corrido no Brasil e certamente guardava ótimas recordações de sua visita anterior.
b) Vamos voltar um pouco no tempo. Em 1932 Stuck chegou à Argentina para participar do Grande Premio Nacional. Stuck chegou à Argentina com sua segunda esposa, a jornalista e jogadora de tenis Baronesa Paula Von Reznicek trazendo um gigantesco Mercedes Benz SSKL que com sua potencia conseguia se impor em provas para carros esportivos na Europa (vide vitoria de Caracciola nas Mille Miglia de 1931) apesar de suas dimensões que não lhe davam muita agilidade. Stuck veio oficialmente pela Daimler Benz em uma “campanha midiática” bem noticiada pela imprensa. Além do SSKL Stuck veio com um charmoso Mercedes Benz SS cabriolet carroceria Armbruster (famosa fabrica de carrocerias austríaca, fornecedora de carruagens para familia imperial austríaca), como “carro de passeio” com o qual naturalmente fez muito sucesso ao lado de Paula.
A idéia era passar antes pela Argentina para participar do GP nacional disputado como prova de estrada (“carretera” em castelhano) Vendo que as estradas argentinas não lhe dariam muita chance, Stuck desistiu da prova argentina, mas fez uma “social” em Buenos Aires e foi homenageado com um cocktail no automovel club argentino no qual expôs seus dois belos Mercedes e, em seguida, veio ao Brasil para frisson dos jornais da época. Aqui encontrou uma estrada Rio-Petropolis nova, com excelente pavimento, que lhe possiiblitou uma tranquila vitória na prova subida de montanha em 28/2/32 e no quilômetro de arrancada e quilômetro lançado em 13/3/32. Praticamente em lua de mel, Stuck e Paula causaram uma sensação e fizeram uma boa agenda social sul-americana.
Stuck e Paula foram objeto tanto da crônica esportiva como da crônica social do Rio e essa famosa primeira aparição de Stuck no Brasil reflete que no início dos anos 30 já havia espaço para uma bem orquestrada ação de marketing que funcionou “às mil maravilhas” para o piloto e para a Mercedes Benz.
Foto: Stuck ficou impressionado pela nova Rio- Petropolis inaugurada em 1928 pelo Presidente Washington Luiz e chegou a declarar que a estrada excepcionalmente larga para os padrões da época e pavimentada em concreto não tinha similares nem mesmo nos alpes suiços. A largura da pista e a ótima pavimentação facilitaram a vitória de Stuck com o Mercedes deixando Stefano dito “ Nino” Crespi em um distante segundo lugar em seu Ford modelo A. Crespi infelizmente faleceria em 1934 com um Bugatti no circuito da Gávea após volenta colisão com um poste na Rua Marques de São Vicente. A subida foi na Rio-Petrópolis entre Meriti (km 14) e Petrópolis (km 57).
Stuck veio a convite de Teffé, amigo pessoal de Carlos e Gilda Guinle. Naturalmente ficou hospedado no Copacabana Palace construido e então pertencente à familia Guinle e administrado por Octávio Guinle (irmão de Carlos)
Foto: Carlos Guinle se prepara para dar uma volta no Mercedes com Stuck ao volante.
Foto: da direita para a esquerda Stuck ,Carlos Guinle. Paula, Manoel de Teffé e (?) ao lado do Mercedes SSKL (SS para Super Sport, “K” para kurz ou chassi curto e o L para licht ou “leve” em alemão) A foto tirada no Brasil merece uma análise de estilo, pois os ternos de linho branco com paletó trespassado (jaquetão) são típicos da época. Os homens estavam com sapatos bi-colores (chamados de “spectators” ou “correspondents”) também tipicos da época.
Fotos da primeira presença de Stuck que trouxe dois belíssimos Merceds Benz, um elegante Cabriolet com carroceria especial Armbruster e o potente SSKL devidamente aliviado para corridas denotando uma presença “com apoio de fábrica” para óbvia propagandada da marca alemã no Brasil. Na foto mais acima à direita, Stuck e Paula na varanda de seu apto. do Copacabana Palace Hotel, também da Família Guinle, evidenciando o apoio dos Guinle às promoções do Automovel Club e ao elegante casal de esportistas europeus.
Foto: O Copacabana Palace Hotel ainda “isolado” nos anos vinte foi construido por Octavio Guinle, irmão de Carlos Guinle. Inaugurado em 1923, ao longo dos anos recebeu nobres, políticos, esportistas, artistas, astros e estrelas do cinema e da música e uma infindável constelação de VIPs Muitos dos pilotos internacionais do Circuito da Gávea se hospedaram no Hotel e desfrutaram dos shows de seu famoso cassino até o encerramento do jogo no Governo Dutra em 1946. O magnífico projeto de Joseph Gire em estilo neoclássico remete aos famosos hoteis Negresco de Nice e Carlton de Cannes. Os outros hotés projetados por Gire no Brasil ente os quais o famoso Hotel Gória do Rio e o Esplanada de São Paulo já não funcionam como tal. O famoso Palace Hotel do Centro do Rio, remodelado por Gire foi demolido há muitos anos. No entanto o “Copa”, o Negresco e o Carlton continuam no rol dos mais tradicionais e elegantes hotéis do mundo.
Concluindo esse tópico é obvio que Stuck já tinha amigos e uma fama gloriosa que o precedia no Brasil e já esperava um tratamento de super estrela do esporte. Eclipsado na equipe Auto Union primeiramente por Varzi e depois por Rosemeyer, Stuck devia estar ansioso para saborear seu status de astro na prova do Rio. Além do que Stuck - na sua condição de “padrinho” de todo o arranjo que colocou a Auto Union nas pistas - mantinha sua grande influência sobre a equipe de modo que deve ter sido o pai da idéia ou deve ter dado um belíssimo apoio à idéia de um deslocamento para o distante Rio de Janeiro.
Vamos antecipar duas imagens da chegada de Stuck ao Brasil, sendo entrevistado e filmado no desembarque com uma pequena multidão o aguardando
Foto: Astro de Hollywood? Stuck no desembarque e a pequena multidão que o aguardava na chegada ao Brasil (imagens do magnífico documentário do jornalista Chris Nixon “Racing the Silver Arrows”).
VISTOS, ENTÃO, OS FATOS QUE PRESIDIRAM A APARIÇÃO DA AUTO UNION, VAMOS VOLTAR A DISCUTIR A PARTICIPAÇÃO DA SCUDERIA FERRARI:
c) Já na participação da Scuderia Ferrari houve uma negociação mais “comercial”. Embora mais para o final daquele ano a Scuderia voltasse ao controle societário da Alfa, a Scuderia Ferrari era muito mais “orientada para negócios” (o que os americanos chamam de “business oriented”). A Scuderia já tinha participado das provas de 1936 e sabia que o governo italiano, igualmente interessado em estreitar seus laços com o Brasil, não precisava se fazer de rogado. A enorme colônia italiana, especialmente em SP, já admirava os feitos da marca Alfa Romeo há muitos anos e fazia questão de ser representada nas provas brasileiras pela Alfa Romeo e estava disposta a pagar por isso.
d) Na excelente biografia de Enzo Ferrari por Brock Yates, fica claro que Ferrari como gestor vivia disso e era um negociador duro tanto na hora de determinar o quanto receberia pela presença da equipe como também era ‘duro” na negociação com seus pilotos. Como Yates narra em seu livro a maioria dos pilotos até o final dos anos sessenta tinha apenas participação nos prêmios das provas e só as “estrelas” é que tinham salários, despesas de viagem, participação nos “prêmios de largada” etc.
e) Continua sendo questionado porque a Scuderia Ferrari não tenha vindo com Nuvolari, seu principal piloto e já bem conhecido no Brasil (via imprensa).
f) Podemos abrir algumas vertentes de explicação, mas precisamos adiantar que a melhor explicação é que na época da prova, em plena temporada européia uma parte da equipe e seu primeiro piloto (Nuvolari) deveriam ficar na Europa pois na semana seguinte à Gávea já havia uma prova importantíssima na Alemanha em que Nuvolari era “imprescindível”.
g) Mas, para explorar um pouco mais podemos ainda cogitar (sem concluir) que a negociação da vinda da equipe possa ter sido um pouco ingênua ao não determinar exatamente quais pilotos deveriam vir, ou ainda que a Scuderia tenha colocado um sobre-preço pela aparição de Nuvolari (quem sabe?).
h) De qualquer modo na análise econômico/financeira, certamente deve ter sido mais negócio para a Ferrari vir sem Nuvolari. Quase com certeza a organização brasileira e o Comendador Sabbado DÀngelo pagaram as despesas todas e Pintacuda e Brivio participaram apenas do percentual de seus prêmios pelo resultado da corrida. (aliás, polpudo prêmio como veremos). Já a aparição de Nuvolari obrigaria Scuderia a dar a ele alguma participação pela simples aparição ou algo que na terminologia posterior seria chamado de “prêmio de largada”.
i) Por fim, Ferrari fazia da equipe um negócio que tinha que dar lucro e paralelamente se sustentar junto a um outro negócio que era a venda de carros de esporte e carros de corrida de segunda mão e a manutenção dos mesmos para particulares. Isso era muito importante e perfeitamente claro nos anos 1930 e válido dali por diante. O exemplo de Arzani, que era o piloto privado com o Alfa mais atualizado na Gávea de 1937, é simbólico. Arzani foi à Italia comprar uma Alfa 8C 35 de segunda mão (um carro que fora da própria Scuderia Ferrari) e, no “pacote”, ainda foi inscrito em uma prova italiana para se “adaptar” ao carro com apoio e assistência da Scuderia. Um “pacote” que deve ter envolvido o carro, peças sobressalentes, a participação de uma prova na Europa, etc.
j) Então para a Scuderia Ferrari, vir à Gávea não era meramente algo bem visto pelo governo italiano (controlador da Alfa Romeo), era um “business” e a Scuderia tratou de “tirar” do Automóvel Clube Brasileiro a melhor negociação possível e quando o mesmo se viu apertado teve que se socorrer do Comendador Sabbado D`Angelo industrial italiano residente no Brasil para uma “verba adicional” para pagamento à Scuderia”;
k) O comendador Sabbado Umberto D’Angelo (ou Sabato D`Angelo) era um imigrante italiano que chegou ao Brasil ainda menino com cerca de 5 anos de idade desembarcando no Rio em 1883 ou 1884. Depois de morar em Minas Gerais veio para São Paulo aos 25 anos de idade e após trabalhar como empregado fundou sua empresa no ramo de tabaco, a “Cigarros Barão”. O sucesso nos negócios lhe valeu o título de “rei do fumo” e sua notoriedade aumentou quando passou a patrocinar eventos culturais e esportivos. Embora sem o enorme prestígio dos grandes grupos empresariais de imigrantes italianos, como os Matarazzo e os Crespi, D`Angelo também teve sua fama e assim como os citados teve simpatias iniciais pelo novo governo italiano e famosamente doou uma partida de cigarros para os soldados italianos que foram lutar na Guerra da Abissínia (Etiópia). Sua principal marca de cigarros era a SUDAN (acrônimo de Sabbado Umberto D`Angelo) embora tivesse outras sub-marcas como a famosa “Leonidas” em homenagem ao “Diamante Negro” apelido do grande jogador de futebol brasileiro Leônidas da Silva. O Comendador identificado como incentivador do esporte logo foi localizado para interceder (com verbas é claro) para viabilizar a contratação da Scuderia Ferrari tanto nas provas de 1936 (Gávea/RJ e Jardim América/SP) quanto na Gávea de 1937. Entre outras obras e patrocínios o Comendador se envolvia também em obras pias e beneficentes e famosamente trouxe da Itália uma imagem de Nossa Senhora do Carmo, ajudando a construir uma Igreja homônima em Itaquera (SP) onde tinha uma bela residência, no bairro hoje conhecido pela arena do S. C. Corinthians Paulista.
l) Voltando à contratação das equipes, a Scuderia Ferrari fez, então, uma longa negociação e certamente espremeu os organizadores brasileiros ao máximo, sem falar que vinha obviamente com segundas intenções, ou seja, a de eventualmente vender seus carros para os pilotos locais após a prova.
m) Mas o Comendador D`Angelo, embora italiano, não financiou apenas os italianos. O Correio Paulistano de 29/5/37 dá a entender que o Comendador D`Angelo financiou também parte das despesas para vinda dos volantes portugueses Vasco Sameiro e Almeida Araújo, assim descrevendo.”.. a vinda dos volantes lusitanos é em parte devida ao altruísmo e cavalheirismo do Comendador Sabbado D`Angelo, o grande industrial paulista, o qual, a exemplo do que fez com os corredores italianos, financiou todas as despesas para que pudéssemos vê-los....”
n) Infelizmente o empresário faleceu pouco depois, em 8/12/38, e o esporte automobilístico perdeu um de seus entusiasmados patrocinadores. Sua viúva instituiria uma fundação que entre outras fomentou a criação de um hospital para estudo e tratamento de doenças cardíacas.
Foto: Brasil nos anos 30: o Comendador Sabbato D`Angelo ao centro da foto no melhor estilo dos anos 30 de terno com paletó trespassado (“jaquetão”) em tecido no padrão “risca de giz”, lenço branco no bolso do paletó e chapéu na mão.
Foto: Os cigarros Sudan eram a principal marca das indústrias tabageiras do Comendador Sabbado D'Àngelo que tinha também os “Leonidas”.
O jornal “O Imparcial” do dia da corrida noticia o apoio do comendador.
o) É preciso explicar aqui uma grande diferença de “approach” entre alemães e italianos nesse particular.
p)Os alemães tinham seus carros de corrida como “segredos industriais”. A Mercedes ao aposentá-los recolheu praticamente todos ao seu museu. Idem a Auto Union. Não havia intenção de venda. Os Mercedes e Auto Union foram escondidos durante a guerra, assim como os franceses esconderam obras de arte e vinhos de melhor safra. Como já contamos anteriormente, quando o lado da Alemanha em que estava sediada a Auto Union caiu em mãos soviéticas, os Auto Unions desapareceram e foram levados para países da “cortina de ferro” correndo a lenda que alguns foram para a União Soviética para “estudos” sendo desmontados para “engenharia reversa” e suas peças foram sumindo ao longo do tempo. Durante décadas e décadas o único Auto Union conhecido no ocidente era um chassis sem carroceria do Tipo C no Deutsches Museum. Os Mercedes ficaram do lado da Alemanha Ocidental nas mãos da fábrica e os raríssimos que saíram de suas mãos foram os poucos que, por algum motivo, foram parar na Tchecoslováquia (atual República Tcheca) ou participaram de esquemas de trocas ou doações para outros museus e -de forma mais rara ainda- daí para coleções particulares.
q) Já Enzo Ferrari, que depois da guerra construiria seus carros com nome próprio era orientado pelos negócios e notoriamente não se preocupava com carros de corridas mais velhos. A idéia prioritária era vendê-los. Se não vendia, a própria Ferrari os desmontava para usar as peças em novos modelos, (pelo que alguns Alfas e depois Ferraris de corrida desapareceram para sempre).
r) Segundo Brock Yates, na citada biografia, Ferrari era inspirado no modelo de negócios da Bugatti. Ettore Bugatti, sob o aspecto social, era, sem dúvida, um industrial mais charmoso e sofisticado que Ferrari e criou um “modus operandi” de fabricar maravilhosos carros de esporte e de corrida e de colocar em torno de si uma vasta gama de ricos esportistas, milionários, nobres, artistas, etc dispostos a comprar seus carros de esporte e de corrida novos ou de segunda mão da equipe de fábrica. Talvez melhor do que Ferrari, Bugatti era ainda mais carismático, vinha de uma família de artistas, morava em um palacete ao lado da fábrica e no mesmo lugar criava cavalos de raça.. ultra-chic......
s) Essa orientação comercial de Ferrari já era sua prática, ou seja, em termos americanos “business as usual” Ele vendia Alfas de esporte e uma grande quantidade de carros de corridas para pilotos privados Europa e encontrou na América do Sul um potencial consumidor enorme. A América do Sul foi mais importante como mercado antes mesmo que ele começasse a explorar as vendas de Alfas (e depois de Ferraris) para América do Norte. Nos anos 50 os sul americanos, embora menos importantes para Ferrari que os norte-americanos, continuaram como um bom mercado consumidor de carros de corrida de segunda mão, um mercado surpreendentemente melhor que alguns países europeus.
t) Para ilustrar, vale recontar que, por exemplo, a Grã Bretanha com seus vários fabricantes de Jaguar, Aston Martin, Bristol, MG, Riley, Allards simplesmente não comprava quase Ferraris nem de corrida nem de esporte. Famosamente em 1960 o empresário e ex-militar Coronel Ronnie Hoare negociou com o Comendador Ferrari uma concessão para a Grã Bretanha, que viria a ser a famosa Maranello Concessionaires. Quando o Comendador perguntou ao Coronel quantos carros pretendia vender ao ano, o Coronel, realista, informou uma quantidade pífia, cerca de meia dúzia (incluindo um para ele mesmo, um de show-room, um de demonstração e talvez dois ou três para vender a amigos). O comendador “fechou o negócio” no ato e se declarou muito satisfeito – em 1960 seis carros era mais do que ele tinha vendido na Grã Bretanha nos últimos 10 anos.
u) Concluindo: Embora a Alfa Romeo na época fosse uma estatal, a Scuderia Ferrari era uma sociedade anônima voltada para resultados esportivos e financeiros. A volta da Scuderia Ferrari para a Gávea de 1937, sem prejuízo da enorme influência italiana no Brasil, foi tratada como um negócio. Por sorte havia um “mecenas” (D`Angelo) que era ele mesmo um homem de negócios o que facilitou a compreensão de lado a lado. A Scuderia queria receber para comparecer independente do resultado e como objetivo secundário queria tentar vender carros de corrida no Brasil. Se apresentou com os mesmos carros que usava na Europa e com dois de seus melhores pilotos embora sem seu “astro” principal, Nuvolari. Já a Auto Union era um conglomerado industrial automobilístico privado, mas sua divisão de corridas contava com verbas estatais. Ela também se apresentou com o mesmo carro que usava na Europa e um dos seus melhores pilotos, embora sem seu “astro” principal Bernd Rosemeyer. A presença da Auto Union tinha mais a ver com propaganda institucional da marca, propaganda alemã no Brasil e, como veremos, uma simpatia pessoal de Stuck pelo Brasil onde já estivera, sendo certo que a equipe não queria vender nenhum carro de corrida no Brasil. A presença da Scuderia Ferrari com suas Alfas foi mais “profissional” e a presença da Auto Union mais institucional, mas verdade seja dita, foi a primeira vez que ambas se encontraram para disputar um GP fora da Europa (exceto Libia e Tunísia), antes mesmo dos EUA e Grã Bretanha, o que torna a prova da Gávea de 1937 possivelmente a mais importante prova do Hemisfério Sul do entre guerras (entre a primeira e a segunda guerra mundial).
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